| | Pedro Estevam Serrano
A experiência de redigir a cada semana uma coluna jornalística sobre temas relacionados ao direito e à política é extremamente gratificante, mas tem seus percalços. O aspecto mais inconveniente que cerca a atividade é o caráter obrigatório que tem. Semanalmente, devo enviar o texto ao editor da revista eletrônica, faça chuva ou faça sol, tenha ou não inspiração.
A tarefa é dificultada pelo aspecto de que os fatos que servem de tema não ocorrem por causa da coluna. Semanas correm em que fatos passíveis de comentários brotam em profusão no ambiente jurídico e político do país; em outras, vou aos jornais e aos portais de notícias e nada parece atraente.
Além da dificuldade de temas, leve-se em conta que uma coluna como a que redijo não carreia características técnico-científicas. Não tem caráter descritivo do direito positivo ou mesmo formulação realista quanto às dimensões redutíveis à razão de uma dada linhagem jurisprudencial. Tem caráter opinativo, e não epistemológico, dependendo, portanto, mais de inspiração que de expiração.
A inspiração literária ou jornalística não vem do trabalho de pesquisa, do verde-musgo da atividade acadêmica que busca formular proposições passíveis de verificação intersubjetiva. Criar uma coluna vem do ócio, do ler algo que inspira e anima, vem mais da rede da varanda ou do chuveiro que da biblioteca. E, como qualidade lúdica, criança, a inspiração nem sempre comparece com disciplina semanal, aliás, talvez seja a essência da antidisciplina.
Como já vai ficando evidente, esta é uma semana em que o ócio produtor de minhas inspirações criativas é só ócio. Nada de animador compareceu. Provavelmente, um produto do fim do ano — aliás, ano duríssimo. Vários casos rumorosos e de muito trabalho surgiram no escritório, e o ano letivo, depois de mais de 20 anos de docência, a cada avanço da idade, vai ficando mais arrastado.
Nesses momentos de ócio não-criativo e enfastiado, costumo defender meu espírito refugiando o pensamento em questões abstratas, despreocupadas com demonstrações de verdade ou com a conjuntura sociopolítica. Aquele território do saber humano só acessível a opiniões e verdades pessoais, doxas socráticas, e não epistemes platônicas. Certamente pelo aspecto lúdico, descompromissado e afetivo que essas reflexões possuem, acalantam o espírito enfastiado e cansado da meia-idade num quase final de ano.
A questão que me veio neste território infértil desta semana é formulada por uma lembrança de meu passado. Há muitos anos, quase três décadas, quando estava me preparando para os exames vestibulares, uma grande dúvida assaltava-me o espírito: estudar medicina ou direito?
Áreas de conhecimento totalmente díspares, o que me inquietava o espírito era a questão levantada por colegas que optaram pelas áreas médica ou de engenharia: como o direito contribui concretamente para a vida humana? Dele resta, ao final de algum trabalho, algo construído materialmente? Implica cuidados reais com a saúde corporal? Contribui efetivamente para a existência humana em sua dimensão material?
A questão é ainda atual em meu espírito. Quando vejo minha família, vejo que toda a história de nosso núcleo familiar perpassa a questão. Sou filho de promotor com advogada e sobrinho de juiz. O mais velho numa prole de seis, com um irmão e uma irmã promotores, um outro advogado e uma outra procuradora do Estado. Como se não bastasse, de meus quatro filhos (somos provas incontestáveis do amor espanhol pela reprodução) a mais velha é advogada e outros dois são bacharelandos em direito.
A questão para mim, portanto, reveste-se de inegável dimensão afetiva. Como o trabalho dessas três gerações pode contribuir, em sua dimensão simples e diminuta no cotidiano forense, para o progresso do país e da Humanidade?
Efetivamente, o direito e sua operação não contribuem em quase nada para a dimensão corporal e material da existência. Produz textos e petições, não remédios ou construções. Mas a questão deveria ser posta em outro molde. O que caracteriza a vida humana é apenas sua dimensão concreta? O “real” humano pode ser reduzido ao concreto?
Obviamente, a resposta nos parece negativa. A realidade da vida humana é irredutível à sua dimensão concreta. Somos seres “sígnicos”, vivemos envoltos em uma dimensão simbólica do existir que nos conforma como humanos.
Até as funções mais primárias que realizamos em nossa dimensão animal, como o comer e o praticar sexo, vêm permeadas pelo simbólico e pela fantasia. “Nouvelle Cuisine” e o beijo têm um sentido muito mais amplo que se alimentar ou a preparação para o coito.
Sem essa dimensão imaterial da existência, não temos identidade, não nos comunicamos, não nos organizamos socialmente com a eficácia que realizamos como espécie.
O ser humano deixa de ser apenas um animal e passa a ser uma pessoa apenas pelo simbólico e, diga-se, por formas específicas do simbólico: institucionalização obtida por meio de normas jurídicas. Somos pessoas porque somos dotados de direitos e deveres, porque somos unidades de imputação normativa.
Os momentos da história humana em que homens foram reduzidos à sua dimensão corporal foram trágicos. Homens estritamente corporais foram os escravos, reconhecidos pela qualidade dos músculos e dos dentes; os hebreus, ciganos, gays e comunistas perseguidos pela fúria nazista, corpos sem nome destinados às câmaras de gás ou aos laboratórios eugênicos; os hereges reduzidos à definição de pecadores e destinados a virar cinza nas fogueiras da Inquisição; os atuais favelados dos morros cariocas e da periferia paulistana tratados como “vagabundos” pelo braço violento do Estado policial etc.
O direito não enche estômagos nem constrói prédios, mas confere dignidade e identidade à existência, atributos simbólicos advindos da normatividade da vida social. Todos nós, operadores do direito, vamos num grande formigueiro, erigindo o grande edifício da civilidade humana. Somos o tempero racional e pacificador de nossa dimensão brutal, violenta e animal como espécie.
Obviamente, a solução que ora formulo à velha questão não foi a mesma que formulei na juventude, quando optei pela carreira jurídica. Respostas muito abstratas são incompatíveis com a realidade hormonal da juventude, saudavelmente mais preocupada com dimensões imediatas e corporais da existência.
Na época, levei em conta o conselho objetivo de meu tio juiz, homem dotado da sabedoria profunda que apenas os não-arrogantes conseguem apreender da observação simples do viver. Ele me dizia que direito era melhor que medicina, porque podíamos estudá-lo em livros, deitados no sofá da sala, e não em pé por horas num laboratório ou sala de cirurgia.
O ócio e a fantasia foram, assim, razões maiores da escolha de meu ofício. Não imaginava na época que meu tio omitia as enfadonhas horas em pé no balcão dos ofícios forenses. A esperteza sábia do magistrado fez o jovem incauto e amante do ócio escolher uma profissão mais trabalhosa e turbulenta do que esperava, mas que muito o orgulha.
Quinta-feira, 6 de novembro de 2008 |
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