Pedro Estevam A P Serrano
Hoje em dia é quase um truísmo jurídico falarmos da distinção entre validade e existência dos atos jurídicos, em especial no âmbito do direito público.
No sentido das lições de Pontes de Miranda, invalidade é defeito dos atos jurídicos, mas só tem defeito aquilo que é! Ou seja, se temos uma máquina de lavar roupas com defeito, este tal defeito só pode ser observado a partir do pressuposto fático de que ali existe uma máquina de lavar roupas que não funciona bem. Assim, o ato inválido é aquele que não encontra fundamentação jurídica na escala normativa superior da ordem jurídica; põe-se em conflito com as normas superiores do ordenamento, mas existe enquanto ato, mesmo que com “defeito”.
A doutrina foi reconhecendo, contudo, que certos atos inválidos eram de tal forma agressivos ao direito, posto que sequer podiam ser admitidos no interior do sistema. Não se submetiam a requisitos mínimos de pertinência sistêmica, ou seja, para efeito do direito, não existem.
Não se pode falar que uma bacia quebrada é uma máquina de lavar com defeito. Ela simplesmente não existe como máquina de lavar. Os elementos mínimos definidores do conceito não se encontram ali presentes. Pois certos atos jurídicos são de tal modo desprovidos de requisitos mínimos de forma, objeto ou conteúdo, que nem são atos jurídicos. Não chegam a ser inválidos porque sequer existem. Mesmo para ser inválido, o ato tem de pertencer minimamente ao sistema, o que não ocorre no chamado ato inexistente.
Assim, por exemplo, uma lei municipal que deveria ser publicada no Diário Oficial e por equívoco é publicada no jornal privado de maior circulação na cidade é inválida, pois não cumpriu requisito formal de validade. Mas é existente porque, mesmo que de forma claudicante, recebeu um mínimo de publicidade. Já uma lei que não foi publicada é uma não-lei, não existe como lei no sistema, nem chega a ser inválida.
A distinção entre inexistência e invalidade de atos não é meramente teórica. Traz consequências relevantes. Por exemplo, o ato público inválido goza de presunção de legitimidade, ou seja, deve ter efeitos como se legítimo fosse até decisão judicial em contrário. Por evidente, o ato inexistente não goza desse tipo de atributo, tratando-se de um mero fato jurídico, ou seja, de ocorrência fática com efeitos no mundo jurídico.
Se perpetrada qualquer violência contra qualquer pessoa com base em lei não publicada, como no exemplo oferecido, essa violência deverá ser tratada sem usufruir de qualquer prerrogativa pública de presunção de legitimidade ou executoriedade. O ofendido deverá recorrer ao Estado para impedir a realização da violência e, se isso não for possível de forma eficaz, poderá reagir com o uso da própria força em defesa de seu direito.
Além dessas, outras distinções práticas ocorrem no tratamento jurídico de atos públicos inválidos e no de atos públicos inexistentes.
Não nos cabe aqui discorrer de forma mais precisa sobre isso, a doutrina de direito público é extensa sobre o tema e já pacificada a respeito. O que nos cabe registrar é desfaçatez com que tem se tratado as consequências de atos públicos juridicamente inexistentes no caso da chamada crise do Senado Federal.
Atos de nomeação de funcionários não publicados não são atos secretos, são atos inexistentes. Sob o ponto de vista jurídico não existem, são um nada! Sequer devem ser anulados os atos inexistentes, mas simplesmente cessados seus efeitos, ou, quando muito, declarada sua inexistência em situações em que tal declaração se justifique.
Não existem atos secretos de nomeação de servidores públicos em um Estado de Direito, talvez com a exceção da designação de espiões para algum serviço secreto de segurança nacional, o que não é o caso, pois os apaniguados de nossos parlamentares parecem não ter vocação para a espionagem, ao menos aquela em favor da nação.
Sob o ponto de vista jurídico, o que ocorreu no Senado foi a retirada de dinheiro dos cofres públicos e entrega destes valores a terceiros. Apenas esse fato aconteceu. Não há ato jurídico algum sem a devida publicação, ocorre “in casu” mero fato jurídico produtor de efeitos ilícitos que continuam a incidir pela inação também ilícita das autoridades responsáveis.
O que estarrece: sabemos há meses dessa ocorrência e só nesta semana uma tal comissão formada naquela Casa de Leis resolve sugerir que os pagamentos parem de ser realizados! Pasmem, caros leitores! Alguém lembrou que seria melhor parar de pagar funcionários que, sob o ponto de vista jurídico, não existem como tal. Em verdade, a referida comissão sugeriu que os tais não-funcionários fossem exonerados! Exonerados de funções que nunca titularizaram!
Obviamente, no que tange aos pagamentos dos não-servidores, a proposta é uma mera sugestão, trâmites deverão ainda ser seguidos até uma ponderada decisão final. Como o dinheiro é nosso, e a decisão deles, ela pode passar por longos trâmites decisórios, sem qualquer pejo, afinal, esses parlamentares não são cidadãos “normais”. Normal é aquele sujeito que está enquadrado em normas postas. Realmente não é o caso.
A novela da desfaçatez prossegue diariamente no noticiário. Criou-se uma nova categoria de atos públicos: os secretos, que agora precisam ser “anulados”, mas precisamos pensar, ponderar nas “gravíssimas” consequências destas “anulações”! Desnecessário falar que o adequado teria sido a interrupção imediata de qualquer consequência fática, jurídica ou pecuniária de tais “atos secretos” logo que foram “conhecidos”. O tema em voga agora deveria ser o de quem deve ser punido, quem agiu de boa-fé e quem agiu com dolo, quem participou do crime e quem não teve a ver com qualquer ilícito.
Ou seja, investigar o ocorrido e punir exemplarmente os responsáveis, nos âmbitos criminal, cível e nas sanções da Lei de Improbidade, ao invés de ainda estarmos refletindo sobre o que fazer com os não-funcionários, com os não-atos etc.
Mas isso, por sua vez, só ocorreria se as autoridades em questão fossem cidadãos normais, aqueles que ganham dinheiro com o suor do rosto, passaram tantas horas dormindo na vida quanto em claro preocupados com as contas, responsabilidades e todas as demais dimensões da existência normal. Felizmente, os cidadãos normais deste país estão recuperando o orgulho da nação enquanto tal, por conta de seus próprios méritos, recusando cotidianamente o convite à desistência que lhes é oferecido por aqueles que pairam acima da lei, do bem e do mal, encastelados em estrito e amplo senso.