sexta-feira, 26 de junho de 2009

Lições da Crise

Por:

Pedro Estevam Alves Pinto Serrano.

Passou quase despercebida na mídia, salvo rápidas e sintéticas matérias de páginas secundárias da grande imprensa, a informação do relatório analítico realizado pela Campanha da ONU (Organização das Nações Unidas) pelas metas do milênio sobre o destino de dinheiro dos países ricos aos bancos do sistema financeiro internacional e à ajuda aos países em desenvolvimento.

As quantias e a desproporção entre elas são impressionantes. Foram realizados US$ 18 trilhões em ajuda pública dos países ricos ao sistema financeiro global no último ano, enquanto US$ 2 trilhões foram destinados aos países pobres nos últimos 49 anos.

Os números espelham a incrível dimensão do que foi a irresponsabilidade quase criminosa do capital financeiro global no período dos “anos dourados” do neoliberalismo iniciado pós-Queda do Muro de Berlim

A farra financeira de uma modelagem sistêmica de anarquia global no fluxo de capitais gerou a crise que hora atravessamos e que, não nos iludamos, teremos de saldar a conta dos tais trilhões com sacrifício na vida pessoal e familiar de cada um de nós.

Obviamente, a cidadania, que não foi convidada para a festa, é agora convocada a pagar a conta da recolhida do lixo produzido pela farra do capital com desemprego, perda das economias pessoais amealhadas numa vida de trabalho, diminuição de padrão de vida e, em certos rincões sociais, fome e desespero.

Mas todo este sacrifício será em vão se não resultar numa apreciação crítica dos erros do período histórico gerador da crise e se não gerar o aprendizado que a crítica quanto aos próprios erros proporciona. Erro não sujeito à crítica e à mudança é erro a ser repetido.

E da reflexão crítica e pública a ser feita, dentre outras relevantes lições, surge, a nosso ver, a inquestionável verificação que o espaço das decisões públicas que afetam a vida social deve ser o da política e não o do mercado.

A partir do momento em que se permitiu que decisões de um conselho de administração de uma grande companhia global interferissem e regulassem mais a vida das pessoas que as leis e decisões estatais, grandes distorções em favor do lucro e em detrimento dos interesses públicos e comunitários se apresentaram, gerando uma crise de trágicas proporções.

A economia não substitui a contento o direito e a política como veículos de decisões públicas. Por mais entranhado que esteja de corporações paquidérmicas e campeado pela corrupção, o Estado é sempre uma instituição mais à mão da sociedade, mais sujeito por sua natureza à possibilidade de influencia real do ambiente social e mais sensível aos reclamos e interesses da cidadania. Também por sua natureza, a iniciativa privada, por mais eficiente que seja em termos de gestão e flexível em suas operações, sempre privilegiará o lucro em detrimento de interesses coletivos, mantendo intangíveis suas decisões pela cidadania.

Em um mundo de economia e vida global como o que vivemos, urge a criação de mecanismos cidadãos de governança mundial que sirvam de freio e limite à ação do capital, em especial o financeiro.

Aos Estados e às nações, cumpre o papel de criar, por acordos multilaterais e pela utilização efetiva das instâncias da ONU e outros organismos similares, normas dotadas de mecanismos eficazes de sanção que impliquem submeter o fluxo de capitais ao devido controle, de forma a preservar os interesses sociais, inclusive com vistas a maior justiça global no cenário de distribuição das riquezas humanas.

Em um momento histórico em que nações em desenvolvimento, como o Brasil, dispõem de parte de suas riquezas para auxiliar países de primeiro mundo, mais do que nos jactarmos arrogantemente do poder de emprestar capital aos ricos, devemos nos lembrar que só há solução definitiva dos graves problemas ambientais e sociais do globo através de alternativas que levem em conta o todo da humanidade.

Creio que temos a missão e a oportunidade de transformar, pela primeira vez na história do mundo, a expressão ser humano em sinônimo de cidadão. Um cidadão global, sem fronteiras no que tange à observância de seus direitos mínimos como integrante da espécie, inclusive o de ver suas necessidades mínimas plenamente satisfeitas por uma riqueza global que todos, em alguma medida, contribuímos para produzir.

Isso só se tornará possível se submetermos o capital e seus interesses aos valores mínimos de ética e solidariedade que devem animar a vida humana. Uma governança global cidadã, democrática e solidária é a força política que poderá submeter os mercados a fins mais civilizados. Talvez seja nossa salvação da barbárie, que certamente reinará num mundo do capital sem freios e sem pejo como o que vimos nos últimos tempos.