sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Artigo completo do Pedro.

Aspectos constitucionais da crise em Honduras

Pedro Estevam Serrano - 01/10/2009

O golpe em Honduras, que destituiu do exercício de seu mandato pelas armas um presidente eleito pelo voto, tem sido duramente criticado e repudiado pela comunidade internacional.

Os golpistas usaram como justificativa para sua conduta o apoio da Corte maior daquele país e do Legislativo à deposição do presidente, fundando-se em dispositivo de sua Constituição, qual seja seu artigo 374, que torna irrito qualquer plebiscito ou referendo que possibilite a renovação do mandato presidencial.

A partir desta justificativa, alguns articulistas têm adotado como verdade uma suposta juridicidade do golpe, que assumiria, assim, não o caráter incivilizado que todo golpe anti-democrático traz em suas entranhas, mas um suposto caráter universal de defesa da Constituição.

Tal conclusão juridicizante do golpe, contudo, não resiste a uma leitura minimamente sistemática do texto Constitucional de Honduras. O artigo 374 da Carta Magna hondurenha efetivamente impossibilita reforma constitucional que altere o mandato presidencial ou possibilite a reeleição do titular do respectivo mandato. Em verdade, tal dispositivo é cláusula pétrea da aludida Carta Magna.

Tal cláusula torna inválida, inconstitucional, qualquer alteração constitucional com tal objeto, mas não tem por si o condão de gerar a perda de mandato pelo presidente da República, e muito menos dispensa o devido processo legal para tal sanção, conforme demonstram, inclusive, os argumentos do eminente jurista norte-americano Doug Cassel, ex-presidente do “board” de estudos jurídicos da OEA (Organização dos Estados Americanos) e professor da Escola de Direito de NotreDame (leia a íntegra do artigo, em inglês, aqui).

Mesmo o artigo 239 da referida Carta, que estipula a cessação do exercício do cargo publico por quem proponha ou apóie a reforma da norma impeditiva do cidadão que tenha exercido a chefia do Poder Executivo de ser presidente da República, em sendo interpretado restritivamente, a nosso ver, destina-se a punir conduta que proponha recondução do atual exercente do cargo e não a mudança do dispositivo para futuros exercentes.

E ainda que se entenda em contrário, tal dispositivo deve ser interpretado em equilíbrio com as diversas normas constitucionais que tornam necessário o devido processo legal para aplicação de sanções graves desta natureza, em especial, o artigo 82 da Carta que determina como inviolável, por qualquer ato estatal, mesmo jurisdicional, o direito de defesa.

O artigo 5° da referida Constituição, por via de consequência, impossibilita referendos ou plebiscitos que tenham por objeto a recondução do residente ao mesmo mandato, sendo que o artigo quarto considera como obrigatória a alternância do exercício da presidência da República, tornando crime de traição contra a pátria sua não observância.

Ora, a consideração como crime da aludida conduta leva o dispositivo a dever ser interpretado restritivamente. A simples proposta de reeleição por um mandato do presidente da República não implica atentado contra o princípio da alternância, apenas diz do lapso de tempo pelo qual se dará tal alternância.

A conduta prevista como crime no artigo 4º é conduta diversa da reforma referida no artigo 374 supracitado, tendo escopo evidentemente mais restrito. Para configurar crime, há que se pretender o fim da alternatividade no cargo e não a ampliação de seu lapso temporal de ocorrência. O único dispositivo no texto que poderia se pretender servir de fundamento à possível perda do mandato do presidente da República seria, provavelmente, a alínea 5 do artigo 42 da referida Carta, que torna passível da perda dos direitos de cidadania, entendida como a capacidade eleitoral ativa e passiva (votar e ser votado), à pessoa que “incitar, promover ou apoiar o continuísmo ou a reeleição do presidente da República”.

O raciocínio imediato pode ser de que, ao pretender a reeleição para o mandato de presidente, Manuel Zelaya teria “perdido” sua capacidade eleitoral passiva, o que implicaria perda do mandato de presidente da República.

Primeiro, a afirmação que a proposta de reforma posta em plebiscito por Zelaya implica inobservância de tal dispositivo merece algum reparo. Tal dispositivo, por estabelecer sanção de perda de direito de cidadania com caráter de pena, deve ser também interpretado restritivamente, conforme lição cediça na doutrina jurídica global, verdadeiro truísmo jurídico.

E a conduta por ele sancionada com tal drástica sanção é “incitar, promover ou apoiar o continuísmo do presidente da Republica”, ou seja, o dispositivo pretende evitar o apoio e o incitamento ao continuísmo do detentor do mandato de presidente na época dos fatos.

Zelaya tem afirmado que sua proposta é de possibilitar a reeleição de futuros presidentes, e não dele próprio, assim, em sendo verdadeira sua alegação, ele não teria apoiado, promovido ou incitado o continuísmo do atual presidente da República, qual seja ele próprio.

Se a proposta de Zelaya de reforma constitucional é de constitucionalidade duvidosa, é uma dimensão da questão, mas esta dimensão não traz por consequência a perda de sua capacidade eleitoral passiva caso verdadeira sua alegação de que não seria beneficiado pessoalmente pela proposta, pois tal inconstitucionalidade não deveria implicar a sanção de perda dos direitos de cidadania por não se referir a continuísmo do atual presidente da República.

E, de qualquer forma, a alínea 6 do artigo 42 e diversos outros dispositivos da Constituição hondurenha determinam que a perda da cidadania deve ser aplicada em processo judicial contencioso e com direito a ampla defesa, observado o devido processo legal, o que não ocorreu de modo algum no procedimento adotado pelos golpistas e seus apoiadores.

Creio não ser necessário me estender no descabimento jurídico de procurar-se legitimar uma suposta pena de perda do mandato de presidente de República sem adoção do devido processo legal, sem um juízo com direito a ampla defesa do acusado. A Constituição de Honduras, como qualquer Constituição democrática do mundo, reconhece o direito de defesa e o devido processo legal em diversos de seus dispositivos, dentre outros, seus artigos 82, 89, 90, 94 e 95.

Ainda que se considere, “ad argumentandum tantum”, que Zelaya cometeu crime ao ter formulado uma proposta de consulta popular contrariamente à Constituição, que o devido processo legal seria desnecessário por não previsão de procedimento específico de cassação de seu mandato na Carta hondurenha, que a Corte maior daquele país sancionou a decisão golpista de detê-lo, a forma de execução dessa decisão foi integralmente atentatória a dispositivos expressos da Constituição de Honduras.

O artigo 102 da Constituição hondurenha estabelece expressamente que nenhum hondurenho poderá ser expatriado nem entregue pelas autoridades a um Estado estrangeiro. Ter detido o presidente Zelaya ainda de pijamas e tê-lo posto para fora do país de imediato atenta gravemente contra tal dispositivo.

A atitude executória dos golpistas também fere o disposto no artigo 85 da aludida Constituição, que determina que nenhuma pessoa pode ser detida ou presa se não nos lugares determinados pela lei.

E mais, não se trata de “mera irregularidade” executória a expulsão,pois inviabiliza fisicamente o exercício do direito de defesa por Zelaya e a realização do devido processo legal,denunciando de forma evidente a verdadeira intenção golpista:depor o presidente por ato violento,sem qualquer processo ou possibilidade de exercício do direito de defesa.

O que se observa do regime constitucional hondurenho, portanto, é que o enquadramento da conduta de Zelaya como crime é no mínimo passível de debate, só deveria ser realizado adequadamente, nos termos da Constituição, no final do devido processo legal. E que jamais, em qualquer hipótese, o presidente detido deveria ser expulso do território nacional, pois mesmo que se considerasse perdida sua cidadania, sua nacionalidade é intangível por qualquer decisão estatal, mesmo que jurisdicional, não se perdendo jamais, como dispõe, inclusive, o artigo 28 da referida Constituição.

A conduta golpista tratou-se de um cipoal de inconstitucionalidades, ao contrário do que postularam articulistas apressados, mais animados pela simpatia ao golpe de direita que por qualquer avaliação mais precisa e sistemática da Constituição hondurenha. Os atos praticados formam um atentado grave a diversos dispositivos da Carta Magna daquele país. A simples leitura primária do referido texto magno subtrai qualquer dúvida interpretativa pela evidência do disposto e pela profusão de dispositivos inobservados.

Em verdade, a conduta dos golpistas e dos que os apoiaram é que, clara e cristalinamente, constitui crime conforme o disposto no artigo 2º da Carta hondurenha, que tipifica como delito de traição da pátria a usurpação da soberania popular e dos poderes constituídos.

Podem ainda querer alegar que, mesmo inconstitucional, toda a conduta golpista foi sustentada pela Corte maior, única interprete real da Carta hondurenha. Às Cortes constitucionais cabe o papel de interpretar a Constituição e não de usurpá-la às abertas. Cabe escolher entre significados possíveis do Texto magno e não romper seus limites de significação. Sua autoridade é exercida não em nome próprio, mas como intérpretes da Constituição, cabendo-lhes defendê-la, não destruí-la. Um Judiciário republicano e democrático, obviamente, não deve exercer a jurisdição de forma imperial, criando normas constitucionais e impondo-as sob o título de interpretar normas vigentes.

A conduta de uma Corte constitucional, como a adotada pela de Honduras, que rompe claramente com o disposto na Constituição em seu exercício jurisdicional, não consegue ser explicada pelo direito, nos limites semânticos da linguagem de competências pelos quais o direito se expressa. É conduta política, imperial, ocorrente pelo uso abusivo da legitimidade que a titularidade da jurisdição empresta aos homens.

Ao agir assim, a Corte hondurenha realizou o que no âmbito jurídico tem-se como “revolução” ou como “poder constituinte originário”, ou seja, uma conduta política e não jurídica, originária, de fundação de uma nova ordem constitucional. Uma ordem imposta, de polícia e não democrática. Na ciência política, o mesmo fenômeno tem outro nome: golpe de Estado.

Absurdo, segundo o artigo 3ª da Constituição de Honduras, chamar de “governo provisório” o poder golpista instalado à força no país.

Determina referido dispositivo: “artigo 3º - Ninguém deve obediência a um governo usurpador, nem a quem assuma funções ou empregos públicos por força das armas ou usando meios ou procedimentos que quebrem ou desconheçam o que esta Constituição e as leis estabelecem. Os atos praticados por tais autoridades são nulos, o povo tem o direito a recorrer à insurreição em defesa da ordem constitucional” (tradução livre nossa).

Portanto, não apenas ilegítimo o governo golpista, como absolutamente lícito, segundo tal dispositivo constitucional, qualquer levante popular que realize desobediência civil àquele governo. É, em verdade, uma rara ocasião, em termos de direito constitucional comparado, em que a desobediência civil tem expressa autorização do Texto constitucional para ocorrer.

Ao reconhecer Zelaya como único presidente legítimo de Honduras, e recriminar duramente o golpe de Estado usurpador da soberania popular naquele país, a comunidade internacional, por consequência, dá guarida à maior expressão da soberania da nação hondurenha, sua Constituição.

Brasão Serrano

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Abs

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quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Pedro na Folha

São Paulo, quarta-feira, 30 de setembro de 2009

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ANÁLISE

Constituição hondurenha não justifica o golpe

PEDRO ESTEVAM SERRANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O golpe em Honduras, que destituiu do exercício de seu mandato pelas armas um presidente eleito pelo voto, tem sido duramente repudiado pela comunidade internacional. Os golpistas usaram como justificativa o apoio da Corte Suprema e do Legislativo à deposição de Manuel Zelaya, fundando-se no artigo 374 da Constituição, que torna inválido qualquer plebiscito ou referendo que possibilite a renovação do mandato presidencial.
A partir dessa justificativa, alguns articulistas têm adotado como verdade uma suposta juridicidade do golpe, que teria, assim, um caráter universal de defesa da Constituição.
Tal conclusão, contudo, não resiste a uma leitura minimamente sistemática do texto constitucional de Honduras. O artigo 374 da Carta Magna hondurenha efetivamente impossibilita reforma constitucional que altere o mandato presidencial ou possibilite a reeleição do titular do respectivo mandato. Em verdade, tal dispositivo é clausula pétrea da Carta.
A clausula torna inválida qualquer alteração constitucional com tal objeto, mas não tem por si o condão de gerar a perda de mandato do presidente e muito menos dispensa o devido processo legal para tal sanção. O artigo 5º da Constituição impossibilita referendos ou plebiscitos que tenham por objeto a recondução do presidente ao mesmo mandato, sendo que o artigo 4º considera como obrigatória a alternância do exercício da Presidência, tornando crime de traição contra a pátria sua não observância.
Ora, a simples proposta de reeleição por um mandato do presidente da República não implica atentado contra o princípio da alternância, apenas altera o lapso de tempo pelo qual se dará tal alternância.
O único dispositivo no texto que poderia servir de fundamento à possível perda do mandato do presidente seria, provavelmente, a alínea 5 do artigo 42 da Carta, que torna passível da perda dos direitos de cidadania, entendida como a capacidade de votar e ser votado, a pessoa que "incitar, promover ou apoiar o continuísmo ou a reeleição do presidente".
Primeiro, a afirmação que a proposta de reforma constitucional de Zelaya implica inobservância de tal dispositivo merece algum reparo. O dispositivo pretende evitar o apoio e o incitamento ao continuísmo do detentor do mandato de presidente na época dos fatos. Zelaya tem afirmado que sua proposta é de possibilitar a reeleição de futuros presidentes, e não dele próprio. Assim, ele não teria apoiado, promovido ou incitado o continuísmo do atual presidente -ele próprio.
E, de qualquer forma, a alínea 6 do artigo 42 e diversos outros dispositivos da Constituição hondurenha determinam que a perda da cidadania deve ser aplicada em processo judicial contencioso e com direito a ampla defesa, observado o devido processo legal, o que não ocorreu de modo algum no procedimento adotado pelos golpistas e seus apoiadores.
Ainda que se considerasse que Zelaya cometeu crime ao ter formulado uma proposta de consulta popular contrariamente à Constituição, que o devido processo legal seria desnecessário por não previsão de procedimento específico de cassação de seu mandato na Carta hondurenha, que a Corte maior daquele país sancionou a decisão golpista de detê-lo, a forma de execução dessa decisão foi integralmente atentatória a dispositivos expressos da Constituição de Honduras.
O artigo 102 estabelece expressamente que nenhum hondurenho pode ser expatriado nem entregue pelas autoridades a um Estado estrangeiro. Ter detido Zelaya ainda de pijamas e tê-lo posto para fora do país de imediato atenta gravemente contra tal dispositivo.
A conduta golpista tratou-se de um cipoal de inconstitucionalidades, ao contrário do que postularam articulistas apressados, mais animados pela simpatia ao golpe de direita que por qualquer avaliação mais precisa e sistemática da Constituição hondurenha. Os atos praticados formam um atentado grave a diversos dispositivos da Carta Magna daquele país.
Em verdade, a conduta dos golpistas e dos que os apoiaram é que, clara e cristalinamente, constitui crime conforme o disposto no artigo 2º da Carta hondurenha, que tipifica como delito de traição da pátria a usurpação da soberania popular e dos poderes constituídos.
Podem querer alegar que, mesmo inconstitucional, toda a conduta golpista foi sustentada pela Corte maior. À Corte constitucional cabe o papel de interpretar a Constituição e não de usurpá-la às abertas. Sua autoridade é exercida não em nome próprio, mas como intérprete da Constituição, cabendo-lhe defendê-la, não destruí-la.
Ao agir como agiu, a Corte hondurenha realizou o que no âmbito jurídico tem-se como "poder constituinte originário", ou seja, uma conduta política e não jurídica, originária, de fundação de uma nova ordem constitucional. Uma ordem imposta, de polícia e não democrática. Na ciência política, o mesmo fenômeno tem outro nome: golpe de Estado.

PEDRO ESTEVAM SERRANO, mestre e doutor em direito do Estado, é professor de direito constitucional da PUC-SP