quinta-feira, 15 de abril de 2010

A Lei de Anistia e o terrorismo de Estado

A Lei de Anistia e o terrorismo de Estado
Pedro Estevam Serrano - 15/04/2010



Conforme noticiado pela mídia, foi adiado por tempo indeterminado o julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) na qual a entidade pleiteia interpretação da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) que exclua de seus benefícios os agentes públicos civis e militares que, durante o Regime Militar, praticaram tortura e homicídios de presos políticos opositores da Ditadura.

A correção jurídica da medida proposta pela OAB nos parece evidente. Por óbvio, não há de se considerar torturas e homicídios realizados contra prisioneiros, pessoas encarceradas pelos órgãos de segurança, como crimes conexos aos crimes políticos dos opositores do regime. Os crimes da oposição à Ditadura foram cometidos em situação de combate. As torturas e homicídios praticados pelos agentes governamentais foram cometidos contra aprisionados, pessoas já fora de combate, que estavam sob zelo e cuidado do Estado.

Note-se que muitos dos que foram mortos pelos agentes da Ditadura não fizeram nada além de manifestar pacificamente sua oposição ao regime arbitrário. São os casos, por exemplo, do jornalista Vladimir Herzog, do deputado Rubens Paiva, do operário Manoel Fiel Filho, entre muitos outros assassinados nos porões dos órgãos de segurança.

Os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil consideram tais condutas nefastas como crime lesa-humanidade. Nossa Constituição os trata como delitos imprescritíveis.

A Lei de Anistia foi redigida pelo governo militar. A OAB, por seus dirigentes de então, se opôs ao caráter restrito dessa aludida legislação, propondo um modelo mais amplo de perdão aos opositores do arbítrio, pois, pelo projeto apresentado pelo Regime Militar, estavam excluídos os chamados “crimes de sangue”. A pleiteada anistia ampla, geral e irrestrita não foi a adotada pelo Congresso de então, submisso que era ao Executivo autoritário.

O governo militar teve todas as condições de incluir expressamente em sua Lei de Anistia os agentes públicos que cometeram delitos em favor da Ditadura. Não o fez. Agora, torturadores e homicidas procuram se escudar em interpretações tortas dos dizeres da Lei de Anistia, o que não deve ser aceito por nossa Corte Suprema.

A Ditadura Militar se iniciou pelo golpe de Estado de 1964, realizado contra a Constituição e o governo democraticamente eleito de então. O regime se iniciou por um ato violento e recrudesceu sua violência a partir de então. O regime constitucional vigente no país “pós-Golpe” foi meramente simbólico. Existia apenas como discurso de tentativa de legitimação e não como ordem jurídica limitadora dos Poderes de Estado. Toda ocasião em que as normas jurídicas significaram obstáculos reais aos intentos do poder totalitário, o resultado era o afastamento da norma, por meio de fechamentos do Congresso, pacotes de abril, atos institucionais, aposentadorias de ministros do Judiciário etc.

Os que pegaram em armas contra tal regime despótico merecem críticas. Severas críticas. Mas tais críticas, a meu ver, se põem mais no território utilitário da política do que em sua dimensão ética. A luta armada foi voluntarista, não tinha o apoio popular imaginado por seus militantes. Acabou por oferecer discurso legitimador aos atos violentos da Ditadura, que recaíram sobre todos os opositores, mesmo os que se limitavam à oposição pacífica.

Obviamente, nada justifica no plano moral a violência de Estado atentatória contra os direitos fundamentais da pessoa, seja praticada por um Estado de direita ou de esquerda. Mas no plano propagandístico a luta armada acabou servindo de argumento de defesa, por algum tempo, ao regime ditatorial. Entretanto, sob o ponto de vista ético e político, a luta armada é substancialmente diferente dos atos criminosos praticados pelos agentes da ditadura.

Para quem defende os valores do Estado Democrático de Direito, o que legitima o uso da violência pelo Estado para impor suas normas é a sua real submissão a uma pauta de princípios garantidores dos direitos fundamentais e a adoção de procedimentos de escolha dos governantes que observem as regras do jogo democrático, inclusive, a plena observação das liberdades públicas que lhe são inerentes.

Governos que se imponham pelo arbítrio, através de processos autoritários de escolha dos governantes, são ilegítimos. Quando tais governos praticam violências atentatórias às liberdades públicas, tais como tortura e homicídio de opositores, praticam crimes de Estado. Em verdade, atos de terrorismo de Estado, pois tais atos de violência, além de suprimir os opositores afetados, buscam instaurar o terror na vida política, trazendo à toda a sociedade o medo de se manifestar criticamente ao governo.

É o que ocorre no Irã e em Cuba e ocorreu no Chile, na Argentina e no Brasil durante suas ditaduras militares. Os atos de terrorismo de Estado, consistentes em torturar e “desaparecer” com presos políticos oposicionistas, visavam não apenas a eliminação ou coação física daqueles que eram vítimas diretas do vilipendio, mas sim inibir toda conduta oposicionista ou crítica na vida social.

Quem viveu na época, lembra-se de fazer críticas por sussurros, lembra-se do medo de fazer críticas na “frente das crianças”, pois estas, em sua inocência, poderiam repeti-las na escola ou em ambientes coletivos. Nossa sociedade era a vítima indireta das torturas e homicídios. A definição do crime de terrorismo é complexa, mas certamente entre seus elementos fundamentais inclui-se esse, qual seja: que o ato delituoso visa atingir a vida social e não apenas a vítima direta da violência.

O terrorismo pode ser praticado por opositores, como foi o caso dos crimes de extrema esquerda praticados contra a democracia italiana na década de 1970. Ou por estrangeiros contra um país, como foi o atentado contra as torres gêmeas de Nova York. Mas também pode ser realizado por Estados, quando seus agentes torturam e matam opositores, com o fim maior de calar a sociedade e se impor como governo. Assim ocorreu no Brasil, no período da Ditadura Militar.

Alguns cidadãos, em sua maioria jovens imberbes, resolveram, equivocadamente, responder à violência terrorista estatal com violência pessoal. Equivocaram-se, mas estão mais no papel de heróis do que no de criminosos.

Pouco importa qual seu móvel. Não importa se eram comunistas, socialistas ou nacionalistas. Se propunham um governo socialista ou um governo democrático nacional e popular de unidade, tratavam-se de propostas que seriam ou não realizadas num futuro abstrato. Sua luta concreta era contra um regime autoritário, de exceção, terrorista!

Agiram em legítima defesa das liberdades públicas e procuraram conter com violência pessoal e risco de vida a violência terrorista e covarde de quem usa o aparato estatal, a máquina de violência organizada que é o Estado, para coagir a sociedade a permanecer silente. E, para tanto, tortura e mata covardemente pessoas aprisionadas, sem condições de defesa, que deveriam ter sua integridade física preservada pelo Estado aprisionador.

Este o sentido maior da anistia, perdoar aqueles que erraram com generosidade, que usaram da violência pessoal como legítima defesa contra o terrorismo estatal.

Após 20 anos subtraindo da sociedade o direito à livre expressão e à crítica, viúvas da Ditadura pretendem roubar nossa história. Sob alegação do perdão devido a todos e da necessária virada de página que ocorreu na vida política do país, querem deixar no segredo os fatos que levaram à tortura e ao desaparecimento de presos políticos do regime. Querem intimidar a jurisdição para que atue contra a recuperação dos fatos, que serviria de alerta às gerações que herdaram a democracia, e não lutaram por ela, de que a luta pela liberdade é infindável. Ser livre é mais ônus de vigilância que fruição.

O tempo passa e, com ele, vem o esquecimento. É cada vez mais difícil mostrar aos jovens o que foi a Ditadura, o quanto usurpou de talento, de ideias, de liberdade e de vida. Como humanos que somos, tendemos a desvalorizar o que temos fácil e por conta desta arrogância na posse acabamos por perder o que parecia nos pertencer tranquilamente. A história nos serve para trazer a rudeza do passado ao presente, para que a liberdade que possuímos hoje seja tida por nós como tesouro e não como mero adorno dispensável no viver.

Jovens, tão jovens como os jovens de hoje, com todo o voluntarismo e a generosidade equivocada que caracterizam a juventude, foram postos em paus de arara, sangraram, moças foram estupradas. Muitos morreram e, diga-se, muitos deles sem praticar ou ter a intenção de praticar qualquer ato de violência. Com seu papel de vítimas, alertaram o mundo para o arbítrio que ocorria no Brasil e na América Latina. Seus corpos fizeram a vez das vozes abafadas pelo medo e das notícias substituídas por receitas de bolo.

É inaceitável no plano ético comparar esses jovens vitimados com seus covardes algozes. O que se deseja não é tanto a punição dos homúnculos que se escondem, a demonstrar sua insofismável covardia, mas sim a apuração do ocorrido e o chamamento à sua responsabilidade histórica. O que está em jogo neste julgamento é muito mais que o legítimo direito das vítimas à indenização individual. É o direito à reparação da grande vítima indireta do terrorismo estatal, a sociedade. Só a recuperação de sua história reparará o mal a ela causado pelo medo e pelo silencio imposto.

A OAB, com tal iniciativa, orgulha a todos os advogados que representa. Os advogados estamos lá onde sempre estivemos, na luta pelas liberdades, contra a tirania em todas suas consequências. Nosso lado nesta luta é tão mais correto e justo que mesmo derrotados devemos preferir a derrota a perfilarmos do outro lado. Melhor a derrota na defesa do justo que a vitória na defesa do obscurantismo violento, cruel e covarde.