O terrorismo de Estado agia a favor da ordem instituída, eis uma diferença
O supremo Tribunal Federal está prestes a iniciar um dos julgamentos mais importantes da história do País: a análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil e pela Associação dos Juízes para a Democracia. A entidade representativa dos advogados sustenta que a Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79) não pode ser aplicada aos agentes do Estado autores de crimes de sangue durante a ditadura (1964-1985). Assim, tem o STF a oportunidade histórica de colocar um ponto final em questão que segue a turvar nosso passado recente e que tem consequências até os dias atuais.
Inicialmente, frise-se, é indubitável a correção do instrumento proposto pela OAB e pela AJD, visto que todas as controvérsias constitucionais acerca da recepção de leis promulgadas anteriormente à Constituição Federal de 1988 devem ser dirimidas na apreciação de ADPFs. Complementarmente, acertam também as entidades ao apontarem o cerne da questão.
O Art. 1º da Lei nº 6.683/79 estabelece que deverá ser “concedida a anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Mas é o parágrafo 1º que suscita a controvérsia, ao dizer que: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Como bem ressaltam os juristas Dalmo Dallari, Pierpaolo Bottini e Igor Tamasauskas, os crimes dos torturadores e homicidas da ditadura não podem ser considerados políticos para fins do regime jurídico protetivo oferecido a esse tipo de conduta pela Constituição Federal, pois, segundo decidido pelo próprio STF, o crime político não se caracteriza apenas pelo móvel ou intenção do agente, mas pelo fato de atentar contra a ordem vigente. Ora, “se crime político é aquele que lesiona a ordem instituída, ficam evidentemente excluídos dessa definição os delitos praticados por agentes dessa mesma ordem para garantir sua manutenção”.
Também como nos demonstram os referidos juristas, não há que se falar em conexão de tais crimes com as condutas dos que se opuseram à ditadura. No direito processual penal brasileiro, “há conexão quando os crimes são praticados pelas mesmas pessoas, ou com a mesma finalidade, ou se os delitos são praticados no mesmo contexto de tempo e de lugar e a prova de um deles interfere na prova do outro”.
Por óbvio, as torturas e homicídios não foram praticados no mesmo tempo e no calor do combate, nem tiveram a mesma intenção, contexto ou lugar das condutas delitivas da oposição. A correção jurídica do mérito da medida proposta nos parece evidente.
A questão da possibilidade de retroação de normas constitucionais originárias, como a que considera imprescritível o crime de tortura, não é objeto da demanda, deverá ser debatida futuramente, em cada caso.
Muitos dos crimes de homicídio, tortura e estupro foram cometidos contra pessoas que nada fizeram de violento, apenas manifestaram sua opinião, direito esse garantido inclusive pela Constituição da época. É o que ocorreu com Rubens Paiva, Vladimir Herzog e muitos outros cidadãos.
No plano político e ético, há um falso debate sobre que lado iniciou a violência, se o Estado ditatorial com o Ato Institucional nº 5 ou os movimentos de oposição armada ao regime. A violência iniciou-se em 1º de abril de 1964, com a ruptura violenta da ordem constitucional democrática e a deposição do governo legitimamente eleito. Cidadãos como Gregório Bezerra chegaram a ser torturados em praça pública, no dia seguinte ao golpe, sob a mera alegação de serem “comunistas”.
A selvageria cometida contra Gregório Bezerra no Recife é simbólica do que caracterizaria os atos de tortura e homicídio pelos agentes oficiais e clandestinos do regime. Tais atos tinham como vítimas imediatas as pessoas violentadas ou mortas, mas como vítima mediata a sociedade, que o arbítrio desejava dominar pelo medo, pelo terror na vida política.
A definição do crime de terrorismo é complexa, mas certamente entre seus elementos fundamentais inclui-se esse, qual seja: que o ato delituoso visa atingir a vida social e não apenas a vítima direta da violência.
O terrorismo pode ser praticado por opositores, como foi o caso dos crimes de extrema-esquerda e direita praticados contra a democracia italiana na década de 1970. Ou por estrangeiros contra um país, como foi o atentado contra as torres gêmeas de Nova York. Mas também pode ser realizado por Estados, quando seus agentes torturam e matam opositores, com o fim maior de calar a sociedade e se impor como governo. Assim ocorreu no Brasil.
Críticas devem ser feitas àqueles que pegaram em armas contra o regime, mas estas se põem mais no plano funcional, pelo voluntarismo que acabou servindo à propaganda do arbítrio, que na dimensão ética de sua conduta. Independentemente da intenção dos oposicionistas que pegaram em armas, se desejavam num futuro abstrato a instauração do socialismo ou se preferiam uma democracia popular de unidade nacional, sua luta concreta foi contra um Estado terrorista e totalitário, traduzindo-se como legítima defesa das liberdades públicas aviltadas pela violência ditatorial.
Para quem defende os valores políticos do Estado Democrático de Direito, o que legitima o uso da violência pelo Estado para impor suas normas é a sua rea-l submissão a uma pauta de princípios garantidores dos direitos fundamentais e a adoção de procedimentos de escolha dos governantes que pratiquem as regras do jogo democrático, inclusive, a plena observação das liberdades públicas que lhe são inerentes.
É inaceitável no plano ético comparar jovens vitimados com seus algozes. O que se deseja não é tanto a punição dos homúnculos que se escondem, a demonstrar sua insofismável covardia, mas sim a apuração do ocorrido e o chamamento à sua responsabilidade histórica. O que está em jogo neste julgamento é muito mais que o legítimo direito das vítimas à indenização individua-l. É o direito à reparação da grande vítima indireta do terrorismo estatal, a sociedade. Só a recuperação de sua história reparará o mal a ela causado pelo medo e pelo silêncio impostos.
A OAB, com tal iniciativa, se põe lá onde sempre esteve, na luta pelas liberdades, contra a tirania em todas suas consequências. Sem desejo de vingança, mas com o desiderato de conhecer e marcar na memória fatos cuja ciência à sociedade pertence.
*Pedro Estevam Serrano é advogado, sócio do escritório Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano e Renault Advogados Associados, mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP, onde leciona. Autor de O Desvio de Poder na Função Legislativa (editora FTD) e Região Metropolitana e seu Regime Constitucional (editora Verbatim). Coautor de Dez Anos de Constituição (editora IBDC).
terça-feira, 27 de abril de 2010
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Folha de S. Paulo de 26 de abril de 2010
TENDÊNCIAS/DEBATES
Saúde via Justiça
MÁRIO SCHEFFER e VIDAL SERRANO NUNES JR.
Aqueles que escolhem o caminho fácil de condenar a corrida ao Judiciário são os mesmos que tergiversam sobre o acesso universal
PARECE TER avançado o debate sobre as decisões que obrigam o Sistema Único de Saúde (SUS) a fornecer, para pacientes que recorrem à Justiça, medicamentos, insumos, órteses, próteses e tratamentos não disponíveis na rede pública.
Finalmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) alçaram a discussão a patamares mais elevados do que pretendiam muitos gestores.
Perderam aqueles que insistem em generalizar as ações judiciais como fraudulentas e geradoras de desigualdades, ao mesmo tempo em que pregam a "reserva do possível", com o objetivo de criar falso dilema entre o direito individual e o interesse coletivo.
O orçamento é uno e os recursos que a ele se integram têm várias destinações, desde publicidade governamental até obras públicas. Assim, o "ônus" da decisão só recairá sobre as políticas de saúde se esse for o desejo do gestor público.
O Judiciário, num Estado democrático, é legítimo para decidir sobre o direito à saúde.
Foi o que ressaltou o Supremo, após ampla consulta à sociedade, ao indeferir recursos do poder público contra decisões judiciais, refutando os argumentos de economia, ordem pública e potencialidade danosa ao sistema de saúde.
A inclusão de um direito fundamental como a saúde na Constituição se deu exatamente para que ele seja respeitado pelos parlamentares, no momento de fazer as leis e votar o orçamento, e pelos governantes, ao implementarem as políticas. O Judiciário, quando determina a submissão do Executivo às leis, nada mais faz do que cumprir a importante tarefa de sobrepor o direito ao poder político ou ao poder econômico.
Serão bem-vindas as recentes decisões do CNJ, que instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para o monitoramento de demandas de assistência à saúde, previu o apoio técnico de médicos e farmacêuticos às decisões dos magistrados e recomendou aos juízes que evitem autorizar o fornecimento de medicamentos em fase experimental e sem registro sanitário. Pesa ainda o fato de não haver definição clara, rápida e amplamente divulgada, por parte do Ministério da Saúde e de secretarias de saúde, sobre qual é o papel de cada nova droga ou tratamento lançado no mercado.
Com isso, além das ações na Justiça, o padrão de prescrição poderá seguir muito mais a recomendação dos produtores do que as contidas em diretrizes médicas isentas e baseadas em evidências científicas. No caso de medicamentos de alto custo e uso restrito, faltam no SUS instâncias que esclareçam as situações de potencial benefício do paciente. Devem ser revistos os "consensos" terapêuticos desatualizados ou contaminados pela ação da indústria, e eliminados os atrasos no registro, na compra e na distribuição de medicamentos e insumos.
Distorções existem até nas pesquisas clínicas realizadas no Brasil. A serviço do marketing, muitos estudos visam ambientar a nova droga, de olho no mercado futuro.
Pleno exercício da autonomia profissional, a prescrição, que fundamenta a ação judicial, por vezes pode estar sujeita a influências que vão desde a má formação do médico até o assédio das empresas farmacêuticas e de equipamentos.
À medida que o processo de incorporação de tecnologias em saúde for mais regulado pelo Estado e compreendido por todos, as ações judiciais serão reduzidas, muito embora nelas reconheçamos um papel propulsor, pois o poder público é levado a pensar a saúde sob a perspectiva da proteção da vida, e não apenas sob a ótica do orçamento escasso.
Aqueles que escolhem o caminho fácil de condenar a corrida ao Judiciário são os mesmos que tergiversam sobre o acesso universal e reinventam a integralidade, pilares do SUS.
Além da luta por mais recursos, restam pouco usados o formidável poder de compra do SUS com vistas à negociação de preços justos, o licenciamento compulsório previsto nos tratados de propriedade intelectual e na lei de patentes brasileira, a aposta em uma política industrial que permita alavancar a produção nacional de genéricos.
A solução, portanto, deve passar longe da ideia de fechar as portas da Justiça, hoje uma aliada imprescindível da garantia do direito à saúde.
MARIO SCHEFFER, doutor em ciências, pós-doutorando do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, é presidente do Grupo pela Vidda-SP. VIDAL SERRANO NUNES JR. , promotor de Justiça em São Paulo, é professor livre-docente de direito constitucional da PUC-SP e autor do livro "A Cidadania Social na Constituição de 1988" (editora Verbatim).
Saúde via Justiça
MÁRIO SCHEFFER e VIDAL SERRANO NUNES JR.
Aqueles que escolhem o caminho fácil de condenar a corrida ao Judiciário são os mesmos que tergiversam sobre o acesso universal
PARECE TER avançado o debate sobre as decisões que obrigam o Sistema Único de Saúde (SUS) a fornecer, para pacientes que recorrem à Justiça, medicamentos, insumos, órteses, próteses e tratamentos não disponíveis na rede pública.
Finalmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) alçaram a discussão a patamares mais elevados do que pretendiam muitos gestores.
Perderam aqueles que insistem em generalizar as ações judiciais como fraudulentas e geradoras de desigualdades, ao mesmo tempo em que pregam a "reserva do possível", com o objetivo de criar falso dilema entre o direito individual e o interesse coletivo.
O orçamento é uno e os recursos que a ele se integram têm várias destinações, desde publicidade governamental até obras públicas. Assim, o "ônus" da decisão só recairá sobre as políticas de saúde se esse for o desejo do gestor público.
O Judiciário, num Estado democrático, é legítimo para decidir sobre o direito à saúde.
Foi o que ressaltou o Supremo, após ampla consulta à sociedade, ao indeferir recursos do poder público contra decisões judiciais, refutando os argumentos de economia, ordem pública e potencialidade danosa ao sistema de saúde.
A inclusão de um direito fundamental como a saúde na Constituição se deu exatamente para que ele seja respeitado pelos parlamentares, no momento de fazer as leis e votar o orçamento, e pelos governantes, ao implementarem as políticas. O Judiciário, quando determina a submissão do Executivo às leis, nada mais faz do que cumprir a importante tarefa de sobrepor o direito ao poder político ou ao poder econômico.
Serão bem-vindas as recentes decisões do CNJ, que instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para o monitoramento de demandas de assistência à saúde, previu o apoio técnico de médicos e farmacêuticos às decisões dos magistrados e recomendou aos juízes que evitem autorizar o fornecimento de medicamentos em fase experimental e sem registro sanitário. Pesa ainda o fato de não haver definição clara, rápida e amplamente divulgada, por parte do Ministério da Saúde e de secretarias de saúde, sobre qual é o papel de cada nova droga ou tratamento lançado no mercado.
Com isso, além das ações na Justiça, o padrão de prescrição poderá seguir muito mais a recomendação dos produtores do que as contidas em diretrizes médicas isentas e baseadas em evidências científicas. No caso de medicamentos de alto custo e uso restrito, faltam no SUS instâncias que esclareçam as situações de potencial benefício do paciente. Devem ser revistos os "consensos" terapêuticos desatualizados ou contaminados pela ação da indústria, e eliminados os atrasos no registro, na compra e na distribuição de medicamentos e insumos.
Distorções existem até nas pesquisas clínicas realizadas no Brasil. A serviço do marketing, muitos estudos visam ambientar a nova droga, de olho no mercado futuro.
Pleno exercício da autonomia profissional, a prescrição, que fundamenta a ação judicial, por vezes pode estar sujeita a influências que vão desde a má formação do médico até o assédio das empresas farmacêuticas e de equipamentos.
À medida que o processo de incorporação de tecnologias em saúde for mais regulado pelo Estado e compreendido por todos, as ações judiciais serão reduzidas, muito embora nelas reconheçamos um papel propulsor, pois o poder público é levado a pensar a saúde sob a perspectiva da proteção da vida, e não apenas sob a ótica do orçamento escasso.
Aqueles que escolhem o caminho fácil de condenar a corrida ao Judiciário são os mesmos que tergiversam sobre o acesso universal e reinventam a integralidade, pilares do SUS.
Além da luta por mais recursos, restam pouco usados o formidável poder de compra do SUS com vistas à negociação de preços justos, o licenciamento compulsório previsto nos tratados de propriedade intelectual e na lei de patentes brasileira, a aposta em uma política industrial que permita alavancar a produção nacional de genéricos.
A solução, portanto, deve passar longe da ideia de fechar as portas da Justiça, hoje uma aliada imprescindível da garantia do direito à saúde.
MARIO SCHEFFER, doutor em ciências, pós-doutorando do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, é presidente do Grupo pela Vidda-SP. VIDAL SERRANO NUNES JR. , promotor de Justiça em São Paulo, é professor livre-docente de direito constitucional da PUC-SP e autor do livro "A Cidadania Social na Constituição de 1988" (editora Verbatim).
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